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Aerodinâmica Computacional: uma perspectiva histórica

Escrito por  Gustavo Halila
em 07 de outubro de 2019

Aerodinâmica Computacional: uma perspectiva histórica

Componente fundamental do processo de desenvolvimento de novas aeronaves, o projeto aerodinâmico é baseado em ferramentas distintas e com natureza complementar. Simulações computacionais, testes em túnel de vento e, até mesmo, ensaios em voo são usados de forma a munir os engenheiros de informações de alta relevância.

Atualmente, ferramentas computacionais são parte importante de todas as fases do desenvolvimento de um novo avião em diversas disciplinas, como aerodinâmica, estruturas e estabilidade e controle. No âmbito da aerodinâmica computacional, são usadas ferramentas que se baseiam desde em técnicas lineares, até rodadas de Computational Fluid Dynamics (CFD) de alta fidelidade.

Essencialmente, o projeto aerodinâmico baseado em ferramentas numéricas é um processo rigoroso e baseado em técnicas científicas e de engenharia. Naturalmente, os estudos aerodinâmicos para um novo avião eram, no passado, baseados largamente em estudos empíricos e em processos iterativos de tentativa e erro.

Perspectiva Histórica: o início

Nas primeiras duas décadas do seculo XX, a recém criada indústria aeronáutica contava com um número crescente de companhias dedicadas ao processo completo de desenvolvimento. Com frequência, novos produtos eram idealizados por aviadores, com suporte para cálculos estrutural e aerodinâmico dado por pequenas equipes de engenharia.

O uso rigoroso de túneis de vento para design aeronáutico foi iniciado na década de 30. Em dezembro de 1931, um modelo de túnel de vento do Boeing 247 (figura 1) foi enviado para testes no túnel de vento do Instituto de Tecnologia da Califórnia (Caltech), então chefiado por Theodore von Kármán. O Douglas DC-1, protótipo que viria a originar o DC-2 e, então, o famoso DC-3 (figura 1), também foi desenvolvido de maneira sistemática com base em ensaios de túnel de vento.

Esse tipo de estudo também teve papel fundamental na correção de problemas de estabilidade latero-direcional no Lockheed 10 Electra. Ainda aluno de mestrado em Michigan, Clarence Leonard “Kelly” Johnson (que, mais tarde, viria a ter participação importante na Skunk Works e no desenvolvimento do SR-71 Blackbird, dentre diversos outros) conduziu estudos no túnel de vento da University of Michigan que levaram ao uso da empenagem vertical dupla no Lockheed 10 Electra (figura 2).

Aerodinâmica ComputacionalAerodinâmica Computacional

Figura 1 – Boeing 247 (acima, 1o voo em 1933) e Douglas DC-3 (abaixo, 1o voo em 1935).

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Figura 2 – Lockheed 10 Electra em sua configuração definitiva (acima, 1o voo em 1934) e Kelly Johnson verificando modelo de
túnel de vento na University of Michigan (abaixo)

Um passo a diante

Nas décadas seguintes, os ensaios em túnel de vento passaram a ter papel cada vez mais relevante no processo de projeto aerodinâmico, saltando de ferramentas de verificação a ferramentas de design.

Na quase totalidade dos casos, os fabricantes de aeronaves alugavam horas em túnel de vento de universidades (Purdue, Washington, Michigan, MIT, Caltech, Georgia Tech, Stanford, etc) ou de laboratórios de pesquisa, como o centro da NACA (sucessora da NASA) em Langley, na Virgínia.

Com o intuito de deter a totalidade do tempo de operação de um túnel de vento de alta velocidade a Boeing começou a operar, em 1944, seu próprio túnel. Esse aparelho foi fundamental no desenvolvimento do primeiro jato de grande porte com asas enflechadas, o bombardeiro Boeing B-47(figura 3) e, em seguida, do 367-80 (protótipo que deu origem ao reabastecedor KC-135 e ao 707, vide figura 3).

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Figura 3 – Boeing B-47 (acima) e Boeing 707 (abaixo).

A exemplo de qualquer problema de física, estudos de aerodinâmica computacional se estruturam em torno das equações que regem o fenômeno sob estudo. Em casos aeronáuticos padrão, as equações de Navier-Stokes (NS, sobre as quais falaremos em detalhes em um próximo artigo) são o ponto de partida.

Essas equações pressupõem que o fluido em questão é newtoniano (em que as tensões viscosas são linearmente proporcionais às taxas de deformação) e de natureza contínua (quando o livre caminho médio das moléculas do gás é consideravelmente inferior às dimensões representativas do problema, podemos tratar o escoamento como um contínuo).

Como modelo físico, as equações de NS, que são equações diferenciais parciais não-lineares (exigindo, assim, processos iterativos de solução), reúnem os efeitos de interesse no âmbito do movimento de uma partícula fluida. Se uma malha (a malha – vide figura 4 – é a entidade sobre a qual as equações são resolvidas de forma discreta, e isso também vai ser assunto para um artigo futuro) bastante refinada for usada, então todas as escalas de turbulência do escoamento serão captadas caso esquemas numéricos adequados sejam empregados.

Naturalmente, isso é bastante caro do ponto de vista computacional e, assim, uma série de simplificações fenomenológicas e níveis de modelagem são usados no dia a dia da indústria aeronáutica. A turbulência e sua modelagem serão objeto de um artigo futuro. Dentro de uma visão qualitativa, podemos definir escoamentos turbulentos como aqueles em que uma atividade randômica característica é observada, em contraste aos escoamentos laminares, que apresentam um comportamento com variações menos abruptas (figura 5).

Na segunda metade da década de 1960, os chamados métodos dos painéis linearizados, que se baseiam nas hipóteses de escoamento invíscido (efeitos de viscosidade não são considerados) e irrotacional, foram largamente usados no desenvolvimento dos supersônicos anglo-francês Concorde (figura 6) e americano Boeing 2707 (que jamais chegou a voar).

A necessidade de se projetar aeronaves com menor assinatura acústica e arrasto de onda possíveis levou a geometrias finas e alongadas que, por sua vez, originavam perturbações de pequena ordem no escoamento livre. Esse fato possibilitou, assim, o uso de tais métodos aproximados como ferramenta de desenvolvimento de forma confiável já que essas características respeitavam as hipóteses que delineiam os códigos de aerodinâmica computacional então disponíveis.

aerodinâmica computacional

Figura 4 – Malha computacional tipica de de uma simulação de CFD para uma configuração asa-fuselagem representativa de uma
aeronave de transporte de passageiros.
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Figura 5 – Contraste entre regiões de escoamento laminar (inferior) e turbulento (superior) em um jato livre.

Nos anos 70, métodos numéricos de solução para problemas de aerodinâmica somaram-se aos ensaios em túnel, modelos analíticos e empíricos de maneira mais pronunciada. No período entre 1970 e 1980, ferramentas de cálculo aerodinâmico baseadas nos métodos dos painéis e, também, na técnica vortex lattice, foram introduzidas com sucesso no desenvolvimento de novas aeronaves.

Um código baseado em métodos dos painéis com correção de camada limite bastante usado atualmente é o Xfoil, enquanto o pacote chamado Tornado baseia-se no método vortex lattice. Ambos são códigos abertos. No ano de 1973, estima-se que algo entre 100 e 200 simulações aerodinâmicas foram conduzidas na divisão de aviação comercial da Boeing1.

Um exemplo da estrutura de painéis usada para simular as características aerodinâmicas da associação do ônibus espacial com o Boeing 747 é ilustrada na figura 7.

aerodinâmica aplicada

Figura 6 – Concorde (esquerda) e concepção artística do Boeing SST (direita).

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Figura 7 – Painéis para simulação aerodinâmica do Boeing 747 transportando o ônibus espacial (adaptado da referencia 1).

Avanços nas simulações

Com a finalidade de reduzir o grau de aproximação presente nas simulações de aerodinâmica computacional, engenheiros se valeram da crescente capacidade computacional disponível.

De fato, a aerodinâmica computacional é uma intersecção entre aerodinâmica, os métodos numéricos da matemática aplicada e a ciência da computação e, assim sendo, avanços e desenvolvimentos em cada uma destas impacta a habilidade de se resolver problemas aerodinâmicos de maneira numérica.

Com o advento dos semicondutores e da microeletrônica, foi possível aumentar a quantidade de transistores em circuitos componentes de computadores de forma a levar a duplicação da capacidade de processamento dos computadores a cada 18 meses.

Essa observação, comumente enunciada na forma da lei de Moore (figura 8), revelou uma evolução exponencial da capacidade computacional. Com maior capacidade de processamento a um custo acessível, os aerodinamicistas puderam lançar mão de simulações baseadas nas equações de Euler, obtidas no limite das equações de NS com efeitos viscosos desaparecendo (ou, em outras palavras, Reynolds tendendo ao infinito).

O uso das equações de Euler ganhou força na segunda metade da década de 90, estendendo-se até a primeira metade dos anos 90 (com uso frequente até os dias atuais). Tanto para métodos potenciais (painéis e vortex lattice), quando para simulações Euler, é possível se realizar a inclusão de efeitos viscosos, seja pelo uso de relações integrais da camada limite, seja pelo emprego direto de um solver de camada limite (em outros artigos, vamos discutir o conceito de camada limite e as técnicas para sua solução em mais detalhes).

Um exemplo de código com formulação Euler e correção de camada limite é o programa MSES.

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Figura 8 – Evolução exponencial do numero de transistores em função do tempo.

Nos anos 90, efeitos viscosos e de turbulência passaram a ser largamente usados em simulações diárias, tomando-se como base modelos do tipo RANS – Reynolds Averaged Navier Stokes, sobre os quais discutiremos mais detalhes em um próximo artigo.

O uso de métodos RANS permite um estudo mais detalhado da topologia do escoamento considerando, entre outros, separações (apesar dos desafios inerentes ao fenômeno de separação em mecânica dos fluidos) e interações entre choque e camada limite.

Com isso, estudos mais detalhados de sistemas hipersustentadores tornaram-se possíveis. Como exemplo, o desenvolvimento do Boeing 777 foi largamente beneficiado pelo uso de técnicas modernas de CFD (figura 9).

Em 2002, já eram feitas algo em torno de 20.000 simulações de CFD na divisão de aviação comercial da Boeing1. Alguns exemplos de códigos comerciais que possibilitam simulações RANS são o CFD++, o ASYS Fluent e o STARCCM+, enquanto o OpenFOAM e o SU2 são códigos open source com capacidade de realizar simulações RANS.

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Figura 9 – Exemplos do uso de CFD no desenvolvimento do Boeing 777 (adaptado da referencia 1).

Do ponto de vista do projeto aerodinâmico, o aumento de capacidade computacional e a consequente ampliação do uso de CFD fez com que o uso de ferramentas computacionais crescesse a uma taxa superior àquela observada para os ensaios em túnel de vento. O aumento da maturidade do processo de CFD, assim como a maior confiança, por parte dos engenheiros, nos resultados obtidos computacionalmente também foi um propulsor no movimento de popularização do CFD na indústria aeronáutica.

Essa tendência causou uma redução no número de asas a serem testadas em túnel de vento, como pode-se observar na imagem da figura 10, adaptada da referência 1. O Boeing 767, cujo desenvolvimento estendeu-se do final da década de 70 ao inicio da década seguinte (entrada em operação em 1982), teve cerca de 77 asas testadas em túnel de vento.

Para o Boeing 787, desenvolvido nos anos 2000, esse número caiu para algo entre 5 a 10 asas, graças ao avanço das ferramentas de aerodinâmica computacional. Como exemplo de aplicação de uma simulação RANS para uma geometria complexa com flap e slat, a figura 11, adaptada da referencia 2, ilustra contornos de coeficiente de fricção para um ângulo de ataque de 13 graus.

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Figura 10– Quantidade de asas testadas em túnel de vento pela Boeing ao longo dos anos (adaptado da referencia 1).

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Figura 11 – Contornos de coeficiente de fricção para uma configuração asa-fuselagem dotada de hipersustentadores em um ângulo de
ataque de 13 graus (adaptado da referencia 2).

Ao possibilitar um maior conhecimento das qualidades aerodinâmicas em fases iniciais do projeto, ferramentas de aerodinâmica computacional tornaram-se indispensáveis para reduzir os custos e prazos de desenvolvimento. Adicionalmente, elas permitem o estudo de uma variada gama de condições de voo dificilmente alcançadas em experimentos, a um custo bastante inferior aqueles dos tuneis aerodinâmicos.

Soma-se a isso a ausência dos indesejáveis efeitos de parede e da estrutura de suporte do modelo, comuns às técnicas experimentais em túnel de vento. Simulações de CFD também são interessantes para se melhor compreender a topologia do escoamento e para se extrapolar resultados obtidos experimentalmente.

Métodos computacionais podem ser usados para se realizar design inverso e otimização aerodinâmica. Ensaios em túnel de vento são usados na validação de métodos computacionais, e ferramentas computacionais são empregadas de forma a auxiliar a efetuação de ensaios experimentais.

Assim, ferramentas computacionais e experimentais são complementares e encontram diversas aplicações conjuntas quando do desenvolvimento de uma nova aeronave. Adicionalmente, deve-se salientar que todas as ferramentas de projeto aerodinâmico devem ser usadas de forma integrada, de forma que seus pontos fracos sejam parcialmente cancelados pelo uso de técnicas adicionais.

A aerodinâmica computacional reúne um conjunto de ferramentas que auxiliam no desenvolvimento, mas não substituem o julgamento de engenharia. O usuário deve estar sempre familiarizado com as hipóteses que permeiam o modelo em uso, pelas limitações das técnicas numéricas usadas, e com os requisitos do verificação e validação a serem respeitados.

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Referências
[1]. Forrester T. Johnson, Edward N. Tinoco, N. Jong Yuàs. Thirty years of development and application of CFD at Boeing Commercial Airplanes, Seattle. Computers & Fluids 34 (2005)1115–1151. https://doi.org/10.1016/j.compfluid.2004.06.005
[2]. Halila, G. L. O., Antunes, A. P., da Silva, R. G., Azevedo, J. L. F. Effects of boundary layer transition on the aerodynamic analysis of high-lift systems. Aerospace Science and Technology 90 (2019) 233–245. https://doi.org/10.1016/j.ast.2019.04.051

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